Trabalho análogo à escravidão no Brasil


A exploração do trabalho 

No ano de 2017, começaram a surgir uma série de reportagens na imprensa internacional sobre o mercado de escravos na Líbia. O território líbio faz parte da rota migratória da África subsaariana para o continente europeu. Nesse circuito, milhares de subsaarianos, em pleno século XXI, começaram a ser apreendidos e vendidos no mercado de escravos, como relatou o jornal El País: 

"Não se trata de sequestros em que se pede um resgate. Não se trata de condições de exploração. Não se trata de poder pagar pela sua liberdade. Trata-se de um tráfico de escravos em que moradores da Líbia compram subsaarianos para que trabalhem em suas casas, fazendas ou plantações sem salário de tipo algum –nada além de teto e comida– e sob um regime de violência. (Leilões de escravos às portas da Europa)."

A situação é agravante, uma vez que em pleno século XXI, o mundo deparou-se com um passado que julgava ter acabado. 

Em julho do presente ano, em mais uma de suas declarações polêmicas, o Presidente Jair Bolsonaro, ao tratar do tema flexibilização das leis trabalhistas afirmou que: "A linha divisória entre trabalho escravo e trabalho análogo à escravidão é muito tênue. Isso está muito tênue e para passar para escravo é um pulo.". No entanto, o Presidente saiu em defesa do empresariado, ressaltando que: 

“Então de acordo com quem vai autuar aquele possível erro na condução do trabalho a pessoa vai responder por trabalho escravo, e dada a confusão que existe a pessoa perde sua propriedade” (Bolsonaro, 2019).


O termo "trabalho análogo à escravidão" deriva do fato que o trabalho escravo legalizado foi abolido no Brasil em 13 de maio de 1888, na conhecida Lei Áurea. Nesse sentido, cabe ressaltar aqui uma primeira diferenciação entre o nosso passado colonial/imperial e os dias de hoje: o Código Penal resguarda a população contra a exploração do trabalho. De acordo com o artigo 149 do referido Código, alguns elementos caracterizam o trabalho análogo à escravidão, tais como: 
  • Condições degradantes de trabalho que coloquem em risco a saúde e vida do trabalhador,
  • Jornada exaustiva e sobrecarga de trabalho, 
  • Trabalho forçado (isolamento geográfico, ameaças físicas e psicológicas, por exemplo),
  • Servidão por dívida (prisão).
Mesmo quando um trabalhador mantém sua liberdade, mas é excluído de condições mínimas de dignidade caracteriza-se como trabalho análogo à escravidão. (o que é trabalho escravo? Repórter Brasil).

Existe um ciclo do trabalho escravo, no qual começa pelas condições de vulnerabilidade socioeconômica do trabalhador, há o aliciamento do mesmo, posteriormente ele se vê endividado com o patrão e não consegue honrar suas dívidas, que ao contrário tende a aumentar. Geralmente, nessas condições o trabalhador tenta a fuga e uma vez livre, a fiscalização é acionada e o mesmo recebe as indenizações devidas, conforme podemos ver no vídeo abaixo: 


De acordo com o Programa "Escravo, Nem Pensar", entre 1995 até 2016, mais de 52 mil trabalhadores foram libertados em situações de análogas a de escravidão, tanto nas zonas urbanas quanto rurais. Conforme pode ser verificado nesse link.

Mas atenção! Trabalho análogo a escravidão é diferente de ESCRAVISMO!!!

Num país, como o Brasil, com um passado escravocrata o tema continua a ser muito sensível. Passados 130 anos da abolição da escravidão, o Brasil continua a ser um país profundamente desigual. O sistema escravocrata no Brasil teve origem nas primeiras décadas dos século XVI, quando foi implantado o sistema produtivo denominado plantation: 
  • mão de obra escrava
  • monocultura (cana-de-açúcar)
  • latifúndios 
Ou seja, uma economia voltada para a exportação. Estima-se que dos 8.678.374 escravos desembarcados através do comércio triangular entre América - Europa - África, 3.168.555 vieram para o Brasil. Entre 1800 a 1850, fomos os maiores importadores de escravos do mundo, conforme indicam os dados levantados pelo projeto slavevoyages.org

O sistema escravocrata só foi legalmente extinto no Brasil em 13 de maio de 1888, através do esforço da luta abolicionista e do papel do próprio negro nesse processo. Uma vez que a escravidão era sistêmica no Brasil, as relações sociais, econômicas e culturais foram guiadas com base na exploração da mão de obra africana e afro-brasileira.

O legado de mais de 300 anos de escravidão pode ser percebido na distribuição de renda, de acordo com Lilia Schwarcz, 
"o Brasil foi formado a partir da linguagem da escravidão, que é, por princípio, um sistema desigual no qual alguns poucos monopolizam renda e poder, enquanto a imensa maioria não tem direito à remuneração, à liberdade do ir e vir e à educação". (SCHWARCZ, 2019, p. 127) 
Ao trazer o passado colonial a tona, a autora apresenta dados associando a desigualdade social à escravidão. A expectativa de vida de homens brancos em torno de sessenta anos de idade passou de 8,2% para 11,1% entre 1993 a 2007. No mesmo período, a dos negros passou de 6,5% para 8%. Em relação a taxa de homicídios no ano de 2010, na população branca ficou na ordem de 28,3 a cada 100 mil jovens brancos, a de jovens negros chegou a média de 71,7 a cada 100 mil. (SCHWARCZ, 2019, p.33). Os níveis de pobreza também são mais altos para a população negra. As mulheres negras, arrimo das famílias, são as mais prejudicadas. Em números absolutos o número de negras e pardas em situação de pobreza é de 35%, enquanto de homens brancos é menos da metade, 16%. (SCHWARCZ, 2019, p.130). O acesso a educação e saúde também demonstra menor participação das populações negras e pardas quando comparada a população branca. Quanto ao enfrentamento das desigualdades sociais, Schwarcz é categórica: 
"Desigualdade não é uma contingência ou um acidente qualquer. Tampouco é uma decorrência "natural" e "imutável" de um processo que não nos diz respeito. Ao contrário, ela é consequência de nossas escolhas - sociais, educacionais, políticas, culturais e institucionais - , que têm resultado  numa clara e recorrente concentração dos benefícios públicos para uma camada diminuta da população". (SCHWARCZ, 2019, p.150). 


Qual país queremos construir?

O passado colonial, baseado na exploração da mão de obra escrava de origem africana, deixou marcas que reverberam até hoje no acesso a renda e nas desigualdades sociais. Uma das consequências do abismo social existente no Brasil é a situação de diversos trabalhadores, espalhados por todo país, em situação de trabalho análogo a escravidão. Durante o texto, foram selecionados diferentes sites, incorporados através de links para uma pesquisa mais aprofundada. Cabe ressaltar, mais uma vez que, o trabalho análogo a escravidão difere do sistema escravocrata, por ser ilegal. Em momentos de crises financeiras, na qual os trabalhadores estão mais vulneráveis pela falta de oferta de emprego, o número de ofertas para o mercado de trabalho escravo tende a aumentar. Ter uma fiscalização eficaz e oportunizar a população de um modo geral, mais acesso a renda e à educação são formas de combater um passado que insiste em não passar.


Referência bibliográfica: SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

  • Sites pesquisados podem ser acessados direto nos links. 


***
Atualização (maio de 2023): Ensinar e aprender são dois lados de uma mesma moeda. No texto utilizei a expressão "trabalho análogo a escravidão", o correto é análogo ao trabalho escravo. Escravidão está ligado ao sistema escravocrata que vigorou no Brasil até 1888. Essa forma de exploração dos seres humanos escravizados era estrutural e estruturante, ou seja, perpassava pelas relações sociais, econômicas, culturais e políticas do período. Embora a exploração do trabalho permaneça, constitucionalmente a escravidão não é mais aceita. 
    Outro ponto importante, as pessoas não eram escravas, elas eram escravizadas.  Isso faz toda diferença, pois elas sofreram uma ação, seus corpos e os corpos dos seus antepassados eram livres em África. 


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