Museu Nacional - Um ano depois

Em 27 de maio de 1888, Machado de Assis, redige uma crônica sobre o Meteorito de Bendegó. O texto, com a ironia refinada e marcante da obra do Bruxo do Cosme Velho, é uma sátira dos momentos finais da monarquia, seus últimos suspiros. A conversa do meteorito com seu guia, Carvalho, trata-se de uma mudança no eixo político, que se avistava no horizonte da época. Abaixo, o leitor pode ler o texto, que é curto, mas denso, como toda literatura do Machado. 

***
Gazeta de Notícias 
27 de maio de 1888
 
BONS DIAS !
Machado de Assis 
           
Cumpre não perder de vista o meteorólito de Bendegó. Enquanto toda a nação bailava e cantava, delirante de prazer pela grande lei da Abolição, o meteorólito de Bendegó vinha andando, vagaroso, silencioso e científico, ao lado do Carvalho .
– Carvalho, dizia ele provavelmente ao companheiro de jornada, que rumores são estes ao longe?
E ouvindo a explicação, não retorquira nada, e pode ser até que sorrisse, pois é natural que nas regiões donde veio, tivesse testemunhado muitos cativeiros e muitas abolições. Quem sabe lá o que vai pelos vastos intermúndios de Epicuro e seus arrabaldes?
Vinha andando, vagaroso, silencioso, científico, ao lado do Carvalho.
-- Carvalho, perguntou ainda, falta muito para chegar ao Rio de Janeiro? Estou já aborrecido, não da sua companhia, mas da caminhada. Você sabe que nós, lá em cima, andamos com a velocidade de mil raios; aqui nestas ridículas estradas de ferro, a jornada é de matar. Mas espera, parece que estou vendo uma cidade...
 – É a Bahia, a capital da província.
 Chegaram à capital, onde um grupo de homens corria para uma casa, com ar espantado, preocupado, ou como melhor nome haja em fisionomia, que não tenho tempo de ir ao dicionário. Esses homens eram os vereadores. Iam reunir-se extraordinariamente, para saber se embargariam ou não a saída do meteorólito
Até então não trataram do negócio, por um princípio de respeito ao governo central. O governo central ordenara o transporte e as despesas; a Câmara Municipal, obediente, ficou esperando. Logo, porém, que o meteorólito chegou à capital, interveio outro princípio – o do direito provincial. Reuniu-se a Câmara e examinou o caso.
Parece que o debate foi longo e caloroso. Uns disseram provavelmente que o meteorólito, tendo caído na Bahia, era da Bahia; outros, que vindo do céu, era de todos os brasileiros. Tal foi a questão controversa. Compreende-se bem que era preciso resolver primeiro esse ponto, para entrar na questão de saber se os meteorólitos entravam na ordem das atribuições reservadas às províncias. O debate foi afinal resumido e o voto da maioria contrário ao embargo; apenas dois vereadores votaram por este, segundo anunciou um telegrama.
E o meteorólito foi chegando, vagaroso, silencioso, científico, ao lado do Carvalho.
– Carvalho, disse ele, os que não quiserem embargar a minha saída são uns homens cruéis. Mas por que é que aqueles dois votaram pelo embargo?
 – Questão de federalismo...
E o nosso amigo explicou o sentido desta palavra, e o movimento federalista que se está operando em alguns lugares do império. Mostrou-lhe até alguns projetos discutidos agora, para o fim de adotar a Constituição dos Estados Unidos, sem fazer questão do chefe de Estado, que pode ser presidente ou imperador...
 Aqui o meteorólito, sempre vagaroso e científico, piscou o olho ao Carvalho.
 – Carvalho, disse ele, eu não sou doutor constitucional nem de outra espécie, mas palavra que não entendo muito essa constituição dos Estados Unidos com um imperador...
 Cheio de comiseração, explicou-lhe o nosso amigo que as invenções constitucionais não eram para os beiços de um simples meteorólito; que a suposição de que o sistema dos Estados Unidos não comporta um chefe hereditário resulta de não atender à diferença do clima e outras. Ninguém se admira, por exemplo, de que lá se fale inglês e aqui português. Pois é a mesma coisa.
 Entretanto, confessou o nosso amigo que, por algumas cartas recebidas, sabia que o que está na boca de muitas pessoas é um rumor de república ou coisa que o valha, que esta idéia anda no ar...
 –Noire? Aussi blanche qu’une autre.
–Tiens ! Vous faites de calembours ?
 –Que queria você que eu fizesse, retorquiu o meteorólito, metido naquelas brenhas de onde você me foi arrancar? Mas vamos lá, explique-me isso pelo miúdo.
 E o nosso amigo não lhe ocultou nada; confiou-lhe que andam por aí ideias republicanas, e que há certas pessoas para quem o advento da República é certíssimo. Chegou a ler-lhe um artigo da Gazeta Nacional, em que se dizia que, se ela já estivesse estabelecida, acabada estaria há muitos anos a escravidão...
 Nisto o meteorólito interrompeu o companheiro, para dizer que as duas coisas não eram incompatíveis: porque ele antes de ser meteorólito fora general nos Estados Unidos – e general do Sul, por ocasião da Guerra de Secessão, e lembra-se bem que os Estados Confederados, quando redigiram a sua constituição, declararam no preâmbulo: “A escravidão é a base da Constituição dos Estados Confederados”. Lembra-se também que o próprio Lincoln, quando subiu ao poder, declarou logo que não vinha abolir a escravidão...
 –Mas é porque lá falam inglês, retorquiu o nosso amigo Carvalho; a questão é essa.
 O meteorólito ficou pensativo; daí a um instante:
 –Carvalho, que barulho é este?
 –É a visita do Portela, presidente da província.
 –Vamos recebê-lo, acudiu o meteorólito, cada vez mais vagaroso
 

 

Informações: 

 

O meteorito, ou meteorólito, conhecido como  “de Bendegó”,  descoberto em 1784, no sertão da Bahia – remoção muito difícil, tanto que somente processada 102 anos depois, agora criando uma polêmica quanto ao “dono” do meteorito, se a União, o estado ou o município.

 

 

Epicuro: Filósofo grego,que acreditava  na imortalidade dos  deuses.

 

 

 –Noire? Aussi blanche qu’une autre. / –Tiens ! Vous faites de calembours ? - Criativo  trocadilho bilíngüe de Machado , que faz  alusão ao temor disseminado nas elites de uma revolta de libertos inspirada na Republiquie Noire do Haiti –  e também a desdenha ( “tão branca quanto qualquer outra”).

 

 

(Referência: https://letterabrasilis.blogspot.com/2013/02/o-meteorito-de-bendego-no-brasil.html)






(vídeo: Memória Sertão Cratera Meteorito de Bendegó)
***
Peço licença ao mestre e escrevo, anos depois, sobre o meteorito. Agora transposto para a realidade do século XX, um sobrevivente da barbárie que acometeu o país nos últimos anos. 
***

Brasil, 02 de setembro de 2019.

BONS DIAS! 

Já se foram 365 dias que estou aqui, sem casa, amigos e visitantes. As obras seguem lentas. Alguns conseguiram escapar, poucos, é verdade! Parece que Luzia passa bem.
A última vez que conversei com Carvalho, eu vinha vagaroso e científico sertão a fora, a pedido do imperador. O Império ruía aos poucos, a república se apresentava como solução. Carvalho nunca iria imaginar que essa República chegou meio torta, passou para as mãos da oligarquia. Teve um momento que olhou para o trabalhador. Uma capital nasceu na região central do país. Passaram 50 anos em 5. Uma série de reformas. A República que começou nas mãos do Marechal teve seus momentos de chumbo, entre 1964 a 1985, o povo foi calado mais uma vez. A República voltou para os generais, que perseguiam e atacavam seus opositores, tempos sombrios.
Em 1988, celebrou-se a Constituição Cidadã simbolizando novos tempos. A seca e a fome matavam no meu sertão, mas em 1994, o país esperançava com a criação de uma nova moeda que fosse capaz de abaixar a inflação. Nos anos 2000 floresceu uma esperança. Pela primeira vez o pobre ousou sonhar em entrar numa universidade e quem sabe até voar num avião. Carvalho iria se assustar se soubesse que agora os homens voam.
Depois de 2015 tudo mudou novamente. Parece que é assim, quando as coisas começam a melhorar para o pobre, vem um e muda tudo. Lembra quando a escravidão acabou e o povo invadiu as ruas cariocas? Pois é, durou pouco.
Parece estranho pensar nisso, mas ocorreu um incêndio na minha última morada no ano passado. 2018 anunciava-se como um ano de mudança política. O incêndio alertava para os novos tempos. Veja bem! O fogo que em poucas horas destruiu o Museu Nacional no Rio de Janeiro. O fogo que vem destruindo a nossa principal floresta por dias.
Quando a Quinta da Boa Vista ardia em chamas parte da nossa ciência virava pó. Não é que a "nova política" resolveu colocar abaixo todo o conhecimento científico!
Enquanto o museu queimava, memória, história e ciência iam juntos. O mesmo fogo se espalhou pelas florestas, universidades, ruas e hospitais. Tudo vem se alterando, diluindo, desmanchando no ar. A mudança que surgiu no nosso horizonte é de destruição.
Hoje, eu voltaria para Bendegó, viver no meu sertão, ao lado de um povo que luta dia a dia, sol a sol por uma vida melhor. Ao lado daqueles que sabem que todos esses que hoje incendeiam o país, passarão. Eles passarão!

(Meteorito de Bendegó, 2018. ultimosegundo.ig.com.br)

*Machado de Assis, aonde quer que estejas, é só uma inspiração, por favor não puxe meu pé a noite. Obrigado!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As grandes navegações europeias e o comércio com a África

Liberdade de Expressão e o Iluminismo

A Revolução Francesa e o Cordel do Enzo