"A ausência que seremos" considerações.

“Já somos  a ausência que seremos.
O pó elementar que nos ignora,
que foi rubro de Adão, e que é agora
todos os homens, e que não veremos

Já somos sobre a campa as duas datas 
do início e do fim. O ataúde, 
a obscena corrupção que nos desnude,
o pranto, e  da morte suas bravatas

Não sou o insensato que se aferra
ao som encantatório do seu nome.
Penso com esperança em certo homem

que não há de saber o que eu fui na terra.
Sob o cruel azul do firmamento 
consolo encontro neste pensamento”
Numa terça-feira, 25 de agosto de 1987, pouco antes de ser brutalmente assassinado, o médico sanitarista Hector Abad Gomez escreve a mão o soneto de Borges, “Epitáfio”, transcrito acima. “A ausência que seremos” é um livro sobre essa ausência, que ainda clama por justiça, bem como várias vidas perdidas na América Latina, em nome de ideais, melhorias e de sonhos, que muitas vezes não nos permitem sonhar. 

Confesso que fui levado pelo título, sabe aquela história de não comprar um livro pela capa? Eu comprei pelo título, que de alguma forma mexeu muito comigo, afinal todos nós seremos ou em alguma medida já somos  essa ausência. Mas para minha grata surpresa, a narrativa em primeira pessoa, de um filho contado a bela história de afeto e amor pelo pai era mais que uma história familiar. É uma história política e de resistência, numa Colômbia abalada pelo narcotráfico e por uma política pautada na violência, mas poderia ser o Brasil da Ditadura Militar, poderia ser o Chile de Pinhochet, a Argentina, o Uruguai, essa sina que é ser latino-americano… 

Em tempos de obscuridade e pedidos incessantes de uma direita histérica, que faz uma constante homenagem à ignorância, o grande trunfo da narrativa de Héctor Abad é não cair em sentimentalismos e apresentar a sua família frente ao mundo que os rodeia. Uma família criada em torno de um patriarca sensível, de uma mãe que toma as rédeas da situação financeira da casa, um universo feminino com várias meninas e um único rapaz. Esse pai, o grande protagonista da narrativa é um médico com vocação para o trabalho humanitário, que se envolve com a população, tem projetos sociais, que é querido por muitos, por entender que a saúde pública deve ser universal e partilhada. E, claro, recebe a alcunha de comunista, por se preocupar com Direitos Humanos. Nada mais atual. 

Assassinado por grupos paramilitares da Colômbia, em Medellin, Héctor Abad (o pai), estava envolvido com os Direitos Humanos, o que contemplava uma trajetória de médico sanitarista preocupado com necessidades básicas da população, como água tratada. Amante da música clássica, amoroso com os filhos, netos e roseiras, e querido por parte da população, sempre foi perseguido politicamente, por seus ideais. Mas o livro não é centrado nas angústias e tristezas da família, ao contrário, na primeira parte da narrativa somos convidados a entrar num universo de alegrias e uma felicidade, que nem a própria família se dava conta. 

A morte anunciada várias vezes ao médico foi consolidada com uma tragédia, como tantas outras tragédias políticas que acompanhamos ainda hoje. Morto a tiros em frente a uma escola, é assim que o filho o encontra. Morta a tiros em um carro, é assim que Marielle é encontrada. Corpos ausentes por se expressarem contra a violência cotidiana das grandes capitais. 

Um trecho que particularmente me tocou bastante foi a reação de uma das irmãs após a morte do pai. Sol arrebenta todos cabos telefônicos da casa, porque em meio ao luto, a família recebe ligações com gargalhadas e pessoas festejando a morte “daquele filho da puta”. Médico, sanitarista, com uma obra extensa de políticas públicas, Héctor Abad era um “filho da puta” por não ser cristão e conservador. Quantos de nós não somos vistos assim?

“A Ausência que seremos” é um livro de 2006, que conta a história de uma família nos anos de 1970 e 1980 na Colômbia, mas é mais atual do que nunca. Abad contempla através das palavras uma bela homenagem ao pai, aos amigos que lutaram em nome da liberdade colombiana e de alguma maneira a todos nós que acreditamos em um mundo menos opressivo e violento. A morte, tema tão sensível a nós, é trabalhada com uma linguagem profunda ora suave ora rancorosa, que fere, mas ao mesmo tempo é humana. 

Abad, Héctor. A ausência que seremos (Portuguese Edition) (Locais do Kindle 2978-2982). Companhia das Letras. Edição do Kindle. 


Atualização tardia: A Netflix disponibilizou no catálogo a obra na versão cinematográfica, um primor: 


 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

As grandes navegações europeias e o comércio com a África

Liberdade de Expressão e o Iluminismo

A Revolução Francesa e o Cordel do Enzo